Crítica: Reza a Lenda

Em uma terra sem lei, a sorte favorece apenas os mais fortes e corajosos. Ara (Cauã Reymond), um homem de ação e poucas palavras, é o líder de um bando de motoqueiros armados que acredita em uma antiga lenda capaz de devolver justiça e liberdade ao povo da região. Quando realizam um ousado roubo, acabam despertando a fúria do poderoso Tenório (Humberto Martins). Agora, Tenório vai concentrar todas as suas forças em uma perseguição para destruir o bando de Ara e recuperar aquilo que acredita ser seu por direito. Durante a perseguição, a jovem Laura (Luisa Arraes) é resgatada de um acidente e tem que seguir o bando contra a sua vontade, despertando ciúmes em Severina (Sophie Charlotte), companheira de Ara.

Reza a Lenda certamente vai dividir opiniões. Os trailers e o marketing dos sites especializados fizeram com que o longa fosse chamado de "Mad Max nacional". De fato, o filme possui influências da franquia de George Miller, principalmente pelo ambiente rústico, inóspito e desértico, pelo estilo dos motoqueiros e uma trilha sonora bem barulhenta. Mas não se trata de uma cópia ou uma adaptação nacional. Em primeiro lugar, porque o filme também sofre influências declaradas de filmes como "Easy Rider" e "Deus e o Diabo na terra do sol", entre outros filmes dos gêneros road movie e de cangaço, como afirma o diretor Homero Olivetto. Em segundo lugar, a história é bem diferente, mais focada na realidade do Nordeste do Brasil, seu clima, cultura e crenças religiosas. Um aspecto social e cultural forte nesta região desde os tempos de Lampião (se o cangaço ainda existisse hoje, certamente o bando utilizaria motos - e as famigeradas traxx - para atravessar a caatinga). Sai o mundo pós-apocalíptico e entra a realidade da seca no Sertão.

Por ser ambientado nesta região, o filme é quase uma literatura de cordel. Só que sem as rimas e poesias e com uma boa dose de ação e loucura. A história se aproveita das paisagens e crenças religiosas para abordar o flagelo social que seca provoca, e a fé e esperança do povo por dias melhores. A esperança do sertanejo de uma vida menos sofrida recai principalmente nos pedidos por chuva nesta terra tão castigada. Muitos recorrem aos Santos pedindo por um milagre divino. Outros tantos acabam criando seus próprios rituais. E em uma terra de tanto sofrimento há os que enlouquecem, os que se aproveitam da fé para levar vantagem, e os justiceiros. 

Reza a lenda que se a Santa certa for colocada no altar de uma igreja certa, a chuva vai voltar para o sertão. É nisso que acredita Pai-Nosso (Nanego Lira), que reúne garotos perdidos ou órfãos para ajudá-lo nesta busca. Os jovens crescem e se tornam um bando de motoqueiros/justiceiros que andam pela caatinga á procura desta Santa. Quando eles descobrem que uma imagem está em poder do "coronel" Tenório (Humberto Martins), que a utiliza para ganhar dinheiro de fiéis peregrinos, resolvem roubar a Santa e devolvê-la a seu lugar de origem. O roteiro então utiliza alguns destes personagens e caricaturas para criar uma batalha típica (anti-)heróis contra vilões. 

O que deve desagradar a algumas pessoas, além de descobrir que o filme não é um Mad Max!, e da clara polêmica religiosa (sobretudo no final), é o rumo e aproveitamento de alguns personagens. Na minha opinião pessoal, apesar de ter curtido o filme, acho que este poderia ser voltado apenas para a ação e aventura. Sei que, de qualquer forma, raramente um filme vai conseguir fugir de críticas (o próprio Mad Max - Estrada da Fúria foi criticado por ter "ação demais e história de menos"), mas aqui acabaram por optar por inserir um suposto e forçado triângulo amoroso no meio de toda a adrenalina, e no fim parece que desistiram de ideia, deixando as personagens femininas um pouco perdidas na história. 

Severina (Sophie Charlotte) foi pouco aproveitada nas cenas de ação (poderia ter sido a "Furiosa" da vez, e Sophie tem talento de sobra pra isso), e também pouco explorada no quesito emocional, quando vê em Laura o perigo de perder seu posto de companheira de Ara. Severina acaba ficando ao papel de uma Maria Bonita dos tempos modernos, que pouco se arrisca na linha de frente da guerra com seu Lampião. Uma personagem durona, por uma atriz talentosa, que poderia ter sido uma co-protagonista à altura. As cenas em que ela participa são boas, mas infelizmente são poucas. Já Laura (Luisa Arraes), por sua vez, acerta por não ficar chorando e gritando como a mocinha indefesa ou donzela sequestrada, mas ela só pode ter se tornado uma vítima da síndrome de Estocolmo. Só assim para justificar suas ações e atitudes durante a história, já que ela acaba aceitando rápido demais seu "destino". De qualquer jeito, mesmo sem rumo definido, a atriz está muito bem em cena.



Ara (Cauã Reymond) está bem como o protagonista, sendo o melhor personagem construído, e Tenório (Humberto Martins) como o "vilão do São João" convence com sua cara de mau. Se aceitar o filme como uma "fábula cordelista", até dá pra encarar o núcleo do bruxo Galego Lorde (Júlio Andrade), mas para os mais exigentes certamente será outro ponto de crítica. E não posso deixar de citar o personagem Pica-Pau (Jesuíta Barbosa), em uma das melhores e mais insanas cenas do filme. 

Não se pode negar que é um filme diferente e inovador, desse que o Brasil está precisando para diversificar seu portfólio cinematográfico dominado por comédias descartáveis e dramas sociais. Também é ousado, por tocar em assuntos polêmicos como fé e religiosidade. Quanto aos aspectos técnicos de fotografia, som e imagem, achei excelente. Uma duração que não provoca cansaço (1:30h), e ótimas cenas de ação. Só faltou um pouco de força e identificação dos personagens. Ainda não temos a experiência (e o orçamento) dos blockbusters americanos,  mas são com estes exemplos que vamos avançando. 



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